Que o aborto é ilegal* no país todo mundo sabe, mas a proibição, estabelecida na legislação brasileira, não impede que mulheres de todas as regiões e classes sociais interrompam uma gravidez indesejada. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) 2016, produzida pela Universidade de Brasília (UnB), aproximadamente uma em cada cinco mulheres de 40 anos fez ao menos um aborto na vida. Só em 2015, estima-se que tenham sido realizados cerca de meio milhão de abortos em todo o Brasil.
Se os números assustam, eles também apontam um caminho: é preciso discutir e qualificar o debate sobre essa questão em todas as esferas da sociedade. “Os índices de abortos clandestinos, o número de infecções que ocorrem, os casos de infertilidade e doenças crônicas, colocam a questão do aborto como um problema de saúde pública e não político”, pondera o ginecologista e professor da UnB, Antônio Carlos Almeida da Cunha.
Como a prática é proibida, as mulheres têm encontrado na internet toda a informação necessária para praticar um aborto: do medicamento à prescrição dos procedimentos para fazê-lo em casa. Há, inclusive, grupos fechados, nas redes sociais, que facilitam o acesso ao remédio e às clínicas clandestinas em todas as regiões brasileiras.
Segundo a antropóloga e pesquisadora Debora Diniz, as complicações de um aborto inseguro são mais dispendiosas ao sistema de saúde do que a realização do aborto seguro. “As consequências para a saúde física podem ser hemorragias, perfurações, infecções, intoxicações, sem falar nos danos importantes à saúde mental. O aborto inseguro pode matar, enquanto o aborto seguro, que siga protocolos da Organização Mundial da Saúde, apresenta risco de morte insignificante”, pontua.
Debora foi um dos responsáveis pela PNA 2010 e 2016. Para ela, o enfrentamento dessa questão deveria levar em consideração alguns pontos: “o reconhecimento básico, porém fundamental, de que as mulheres não podem ser submetidas à tortura da ameaça da prisão ou graves riscos à saúde e à vida por precisarem interromper uma gestação. Nessas situações, como para qualquer outra necessidade reprodutiva, as mulheres devem ser acolhidas pelos sistemas de saúde”, afirma.
De acordo com o estudo, quase a metade das mulheres que fez um aborto em 2015 precisou ficar internada para concluir o abortamento. “Quando o procedimento ocorre clandestinamente, o índice de mortalidade materna se eleva bastante”, ressalta o ginecologista. No entanto, não são todas. Mesmo sendo difícil o levantamento de dados, uma vez que o aborto é considerado um crime no Brasil, a pesquisa traça um perfil. A maior frequência de abortos ocorre entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, que vivem nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
“Embora seja difícil produzir dados que mostram que a criminalização do aborto prejudica, especialmente, as mulheres com baixa escolaridade e renda, sabemos que o padrão de acesso a serviços de saúde segue a desigualdade da sociedade brasileira, especialmente em se tratando de um procedimento clandestino. Para quem pode pagar, existem clínicas luxuosas que realizam o procedimento com segurança e descrição”, ressalta Debora.
De acordo com o Ministério da Saúde, o abortamento é quando a mulher se encontra em iminência de perda fetal, espontânea ou induzida, com sinais típicos, como cólicas e sangramentos. “O aborto induzido, além das situações previstas em lei, acontece geralmente em condições inseguras, podendo resultar em mortalidade materna. Nesses casos, o procedimento não é computado como aborto, cabendo ao profissional de saúde prestar assistência a fim de preservar a saúde da mulher.”, destacou a pasta em nota.
Crime contra a vida
A Constituição Federal de 1988 garante a inviolabilidade do direito à vida. O Código Civil, por sua vez, exprime os direitos do nascituro – ser humano já concebido e que ainda está por nascer. Assim, quem provoca um aborto em si, pratica um crime contra a vida, podendo pegar uma pena de um até três anos de prisão.
No Brasil, o aborto é legal em apenas três circunstâncias: quando há gravidez em decorrência de estupro, quando é diagnosticado anencefalia no feto e quando não há outro meio de salvar a vida da mulher. Nesses casos, segundo o Ministério da Saúde, a gestante pode ser atendida em qualquer um dos estabelecimentos públicos de saúde que possuem serviços de obstetrícia, seguindo as normas técnicas de atenção humanizada ao abortamento, estabelecidas pela pasta e pela legislação vigente.
Em 2015, foram registrados no Sistema Único de Saúde (SUS) 1.667 casos de abortos legais. Em 2016 esse número foi um pouco maior, chegando a 1.680. Em relação às mortes de mulheres, dados do Sistema de Mortalidade (SIM) apontam que 132 morreram nesses dois anos em decorrência de abortos.
A percepção brasileira
Segundo pesquisa inédita dos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, divulgada no início do mês, 45% dos brasileiros conhecem alguém que interrompeu pelo menos uma gravidez indesejada. “Isso quer dizer, em números absolutos que, no Brasil, 72 milhões de homens e mulheres conhecem ao menos uma mulher que realizou um aborto. Estamos falando de um tema que é pouco falado, pouco discutido e que se conversa somente na clandestinidade, ao pé do ouvido, mas que atinge um número muito grande de mulheres como um todo”, ressalta a diretora do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo.
O estudo foi feito em domicílio, com uma amostragem de 1,6 mil homens e mulheres de 16 anos ou mais, em 12 regiões metropolitanas do Brasil. Outro dado que chama a atenção na análise é sobre opinião das pessoas em relação ao direito das mulheres em decidir por interromper ou não uma gravidez.
“Sessenta e dois por cento responderam ser contrários; 26% disseram ser favoráveis que a mulher possa, sim, decidir interromper uma gravidez; e 10% ficaram nem contra nem a favor. Isso significa também dizer, apesar dessa polarização de opinião, que 42 milhões de brasileiros declaram ser favoráveis que a mulher possa decidir”, explica a diretora.
Ao serem questionados sobre o que fariam se uma amiga fizesse um aborto intencional, 47% dos entrevistados responderam que não agiriam. Jacira Melo explica que o objetivo da questão era humanizar o assunto. “Quando a gente coloca na pergunta ‘uma amiga’ nós estamos tentando humanizar essa questão. Diante de todas as outras respostas, a gente vê que quando aproximamos o tema do entrevistado, temos outra visão da população sobre o tema”, relata.
O debate no Congresso
Vai ficar para 2018 a votação da PEC 181, de 2015, que pretende inserir na Constituição Federal a proibição do aborto em todos os casos, inclusive os já previstos hoje pela legislação.
A princípio, a proposta tinha o objetivo de ampliar a licença-maternidade para mães de bebês prematuros, de 120 para até 240 dias. O texto, no entanto, foi modificado pelo relator, o deputado federal Jorge Tadeu Mudalen (DEM/SP), que defende que o conceito de proteção à vida começa a partir da concepção.
Por Gabriella Bontempo
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