Eustáquio ‘do Incra’, um adeus e uma vida dedicada a Rondônia

Este personagem, mineiro de BH, chegou muito jovem a Rondônia e ajudou  tornar possível o sonho de muita gente em busca de um “pedaço de terra para dizer que é seu”.

A morte de um dos pioneiros no desafio da colonização de Rondônia, Eustáquio Chaves Godinho, revela, nas palavras do jurista Amadeu Machado, que “em breve a geração maravilhosa de verdadeiramente destemidos pioneiros estará extinta e todos serão apenas sombras de um passado remoto e totalmente desconhecido”.

Eustáquio do Incra, com era conhecido, morreu no último dia 17 aos 76 anos de idade, em uma UTI, vítima da complicação de células degeneradas que se espalharam pelo corpo. Ele era viúvo, deixa três filhos e netos.

Aos 23 anos de idade, quando chegou ao Projeto de colonização do Incra, em Ouro Preto/RO, Eustáquio, o mineiro de BH, fazia refeições no restaurante da Dona Gladys Marta Gutierrez, na Sapolândia, e adorava praticar Capoeira nos fins de tarde no campo do Incra. podemos dizer que foi ele quem trouxe essa arte marcial para o interior de Rondônia em 1972.

Para contar um pouco da trajetória desse personagem, entre tantos que ajudaram a tornar possível o que Rondônia é hoje, Amadeu Machado nos traz essa preciosidade de informação histórica e reflexão. 

MAIS UM HERÓI QUE PARTE SILENCIOSAMENTE.
Texto *Amadeu Machado

Faleceu Eustáquio Chaves Godinho.

Uma grande parte da população de Rondônia indagará:

Quem foi esse cara?

Um anônimo.

Os mais antigos, especialmente, homens que lidam com a terra, com certeza lhes dirão quem foi Eustáquio.

Ah, o Eustáquio do INCRA. Grande sujeito.

Pois é…

Os tempos velozes que vivemos estão fixados num presente ficticiamente alucinante e num futuro repleto de incertezas, preocupações e mil indagações.

Para as novas gerações, não existe o passado.

Em uma de suas canções o Belchior diz textualmente que “o passado é uma roupa que não nos serve mais”.

Mesmo que seja um passado bem recente.

Eustáquio chegou ao Território Federal de Rondônia quase um menino, ali pelo ano de 1972.

Técnico agrícola era sua formação.

Assis Canuto o contratou para trabalhar na operacionalização do Projeto Ouro Preto, o PICOP.

A participação de Eustáquio foi extremamente importante. Ele sempre foi dedicado e não media esforços para a realização das ásperas tarefas que lhe eram atribuídas.

Receber com boas-vindas os brasileiros de todos os cantos que chegavam aos borbotões, em busca de um pedaço de terra para dizer seu, plantar, colher, sobreviver, criar seus filhos com esforço e muita dignidade era a primeira tarefa dele.

Levar estes homens e suas famílias para os lotes que lhes eram destinados, dar-lhes orientações de sobrevivência na selva, como cultivar a terra, resolver pequenos e grandes conflitos agrários, salvar vidas em risco por ataques de animais, picadas de cobras, famílias inteiras agonizantes pela malária.

Perdeu-se a conta das malárias que ele teve. Os riscos que precisava enfrentar e que depois eram contados, como causos até cômicos, nos encontros de amigos.

Não havia hora, muito menos dia de semana. Fosse sábado, domingo, feriado, lá estava permanentemente à disposição e sempre afável, apesar das agruras e dificuldades enfrentadas.

Estradas não existiam. Muitas vezes adentrava à mata amazônica e munido de um facão abria as primeiras picadas – caminhos por onde adentrava e conduzia os intrépidos colonos até o local que lhes fora destinado.

Foram milhares de expedições levando uma mochila e um facão que, por aqui, se chama terçado.

Armar rede nas frondosas árvores, em boa altura para não virar refeição de onça e dormir dando tapa em carapanã,(pernilongo) mais tapas durante o dia nos ferozes piuns, lembrando que naquele tempo não se conhecia repelentes, quando havia disponibilidade passava-se azeite na pele.

O mosquito dava uma primeira sugada e entupia sua tromba.

Conheci Eustáquio em 1974. Passava por Ouro Preto, indo para Pimenta Bueno, onde estava ocorrendo um conflito agrário e o encontrei organizando uma caravana de colonos que seriam levados para o Projeto Sidney Girão, em Guajará-Mirim, pois, Ouro Preto, estava saturado e não havia mais espaço para novos assentamentos.

Este encontro o Eustáquio sempre lembrava quando de nossos encontros.

Mais adiante ele foi designado para compor a equipe que iria promover a expansão do Projeto Ouro Preto, na localidade denominada Jaru, em função do nome do rio que por ali passa.

Tudo de novo. Colonos chegando em caminhões pau-de-arara, ou em ônibus da Eucatur. Abertura de picadas, seleção de famílias para ganhar um lote, ou uma parcela, daí chamar-se parceleiro quem fosse contemplado.

No projeto Jaru a malária matou muito. Sabe-se de pessoas que acometidas da febre tentavam chegar à sede do INCRA, mas, morriam pelos rústicos caminhos.

Era tanta malária que se dizia então, que na beira da poeirenta, ou lamacenta BR-364, macacos ofereciam banana em troca de aralen (medicamento usado para debelar a doença, cujo princípio ativo é a cloroquina).

Eustáquio mais uma vez cumpriu galhardamente sua missão.

Depois ele teve passagem por Ariquemes em seus primórdios e bem mais adiante chegou à sede do INCRA, em Porto Velho, onde passou a operar no sistema de regularização fundiária.

No manuseio dos processos que objetivavam a expedição de títulos definitivos, Eustáquio conhecia toda as pessoas, ia aos locais para verificar a implementação dos requisitos para a outorga do sonhado documento de propriedade e, mesmo sendo técnico agrícola, dada sua dedicação e permanente busca pelo aperfeiçoamento, tornou-se um dos mais destacados conhecedores do direito agrário.

Estudava detidamente toda a legislação, decretos, portarias, resoluções, instruções e as aplicava com imensa sabedoria.

Sua sala no INCRA estava sempre cheia de gente, humildes ocupantes de terras públicas que buscavam informações e orientações e a todos atendia com cortesia e eficiência.

Milhares de títulos foram chancelados por ele.

Muito jovem faleceu sua esposa, Joana D’Arc e ele assumiu a criação dos filhos, sendo pai e mãe, aos quais se dedicou com muito carinho e esmero.

Em seu velório toda a família, alguns amigos e colegas de serviço, mesmo estando ele aposentado.

O vi no esquife, de onde partiu para a última morada. Fiz uma oração pela sua alma e intimamente lancei um preito de gratidão ao ex-colega e eterno amigo.

Foi um gigante. Será sempre um herói. Pena é que o passado é uma roupa que não serve mais.

Em breve aquela geração maravilhosa de verdadeiramente destemidos pioneiros estará extinta e todos serão apenas sombras de um passado remoto e totalmente desconhecido.

Dito isso resta lançar a frase síntese:

UM POVO SEM MEMÓRIA É UM POVO SEM HISTÓRIA.

Eustáquio faz parte da fantástica e heroica história da construção de Rondônia e é merecedor de homenagens que o perpetuem na memória de todos os rondonienses.

O autor: *Amadeu Machado é ex-juiz eleitoral, conselheiro aposentado do TC,  advogado na ativa e um maravilhoso contador de histórias.

Em primeiro plano o campo construído na sede do Incra no início da década de 1970.
O primeiro grande abalo sísmico sentido em Ouro Preto foi em 1973. Foto de Ouro Preto quando a´pida era projeto de colonização do Incra, no início da década de 70. (Acervo – Assis Canuto)

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