
Uma crônica de causos, em primeira pessoa, escrita pelo jornalista Carlos Pedro Macena.
Trilhazinha a pé, Tia Ivett Inês rente, talvez fossem apenas cento e poucos metros. Até onde me é dado lembrar, ali se originaram estes sessenta e um anos. Nunca mais lá voltei. Segui o conselho do personagem de Philipe Noiret, cego pelas chamas do projetor, ao despedir-se de Toto na estação de Giancaldo em “Cinema Paradiso”.
Contudo, corria 1968. Debaixo de vara, calçãozinho azul, quatro anos, rumava para a escolinha do Ginásio Paulo VI, 713 Norte, Brasília. Fui barrado. Praguejava a sargenta diretora, “Esse menino mal sabe porquê lhe trocam as fraldas. O quê um garoto que já sabe ler e escrever com quatro anos veio fazer na minha escola?”
Pedro Maranhense, meu avô, pai de D. Tereza, analfabeto, garimpeiro, marceneiro, derrubador de bálsamos a machado, montador de carros-de-boi, devoto de tal fervor na oração que parecia levitar, já me havia apresentado ao e maceteado no alfabeto.
Sílabas, ditongos, hiatos, zeugmas, suarabáctes, partícula “se” como índice de interminação do sujeito, aprendi debaixo de taca – ditado da profs era bico. Motim. Danem-se as proporções, a catifunda mocoronga tentou replicar o dístico de Buchenwald e Dachau, “Arbeit não-sei-o-quê”, Só o trabalho liberta. Se deu mau-lha.
Quem já se sentiu deslocado numa festa errada sabe do que falo. Ceguinho, tampinha, orelhudo e sabido, com uma mãe master, motim bemsucedido. Nocauteada a boçalidade da Sargenta Pincel, DT peitou o ministério da ditadura – e dali foram Marista, USP e Aquiraz.
Cinquenta e cinco anos depois, saibam o quanto foi inapropriado. Com nove anos estava na quinta série do Marista da 609 Sul. E apavorando. Piorou num recreio quando, à mesa de ping-pong em mármore com tela de metal verde trançado, cansado de apanhar dum patife chamado Maduro, canhoto que nos aleijava com um saque matador, mais gelado neto de Julius Streicher, algemado à sua Nittaku assassina, por conta de quem fazíamos fila pra passar raiva, descobri o “pequeno roque”.
Capablanca, Ruy Lopez, Polugaievski, Fischer, Henrique Mecking, todos se eclipsaram quando, já quase em outubro, uma garota da sétima esperava o Frei Hilário tocar a sineta do fim do recreio para, naqueles meus delírios de então, flechar-me com um não-olhar sobre o qual há quem testemunhe o estupor junior deste cearense, como meu querido amigo e colega de classe, Francisco Gabriel Pinto Heilmann.
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Corta para 1984, 1994, 2004, 2014, 2024.
*Carlos Pedro Macena é de Brasília (DF), 61 anos, graduado em Jornalismo pela USP/1989. Ex-Diretor da Afiliada Globo m Vilhena, ex-repórter de Política da “Folha de Rondônia”, Chefe de Reportagem do “Diário da Amazônia”, Assessor de Imprensa do Detran-RO. Trabalhou na Editora Abril, no Grupo Folhas e 11 anos no Banco do Brasil. Atualmente, só pesca e mente.
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