Folha – Cantora, atriz, vedete, maquiadora, jurada, modelo. De todas as profissões que exerceu em 74 anos de uma vida que chegou ao fim na noite desta segunda-feira (4) no Rio de Janeiro, Rogéria preferia mesmo era ser chamada de artista.
A informação de sua morte foi confirmada à Folha por sua amiga há mais de 50 anos, Eloina dos Leopardos. “Fiquei sem ação. Estou em estado de nervo. Uma amizade de 50 anos”, disse Eloina, que contracenou com Rogéria no documentário “Divinas Divas”.
Rogéria estava internada em um hospital na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. No início de julho, Rogéria foi internada na UTI da clínica Pinheiro Machado, em Laranjeiras, com uma infecção urinária. Após sofrer uma crise convulsão, seu estado de saúde piorou e continuou internada por duas semanas, respirando com a ajuda de aparelhos.
Rogéria voltou algumas vezes ao hospital, ao qual seu empresário, Alexandro Haddad, afirmou que estava dando continuidade às sessões de fisioterapia.
CARREIRA
Nascida em Cantagalo (a 200 km do Rio de Janeiro) em 1943, Rogéria cresceu na capital do Estado (e então do Brasil), onde teve contato com as artes desde criança. Inspirada pelas vedetes de revistas, entrou no teatro. Começou a carreira na coxia, maquiando. Até que, incentivada por Fernanda Montenegro, voltou os pincéis de maquiagem para o próprio rosto. Astolfo Barroso Pinto virava Rogéria, uma dama fluente em francês e em piadas rápidas, que fizeram Grande Otelo chamá-la de “Uma arma do humor”.
Rogéria usava o epíteto “A Travesti da Família Brasileira” para falar de si mesma, muitas vezes na terceira pessoa. Um título que conquistou com centenas de horas de horário nobre. Esteve em “Viva a Noite”, “Tieta”, “A Grande Família”, “Sai de Baixo”, “Malhação”, e invadiu casas pelo país com seu gênero que embaralhava definições e mentes –ela se identificava como transformista, mas concedia liberdade poética: “Pode chamar de bicha mesmo”.
Foi também jurada das mais tarimbadas. Frequentou sets de Chacrinha a Luciano Huck e julgou o talento de muita gente (“Eu estou aqui pra ver se a pessoa tem ‘star quality’, não se é bonita ou feia”). Participou de filmes como o “O Homem que Comprou o Mundo” (1968), “Gugu, o Bom de Cama” (1979), “Copacabana” (2001) e recentemente “Divinas Divas”, documentário de Leandra Leal sobre uma geração de transexuais e travestis que, durante a alvorada da Ditadura Militar, transformariam o entretenimento nacional com um novo gênero de teatro, em que transexuais, transformistas e travestis se apresentavam para um público médio que nunca tinha tido contato com elas.
Com as histórias que desfiava para quem quisesse ouvir, de como a cantora Marlene tirava meias-calças das pernas para lhe dar ou de como Roberto Carlos emprestou um apartamento seu no Rio para que ela se empetecasse para um Carnaval dos anos 1960, ela poderia fazer um colar de pérolas.
Depois de morar em Paris e fazer turnês pelo mundo, Rogéria nos últimos anos montou quartel-general num apartamento no Leme. Passeava toda tarde pelo bairro carioca, sempre escondendo o cabelo (se orgulhava de há seis décadas não precisar usar peruca), para não ser reconhecida e parada a cada dois passos. Ia ao Boteco do Gato onde discutia futebol com a macharada de plantão. Fazia campanhas publicitárias e aparições como ela mesma em novelas e filmes.
Namorou até o fim. “Saí com um menino liiiindo, novinho, mas que olhava para mim na cama e dizia ‘Não acredito que estou com Rogéria’. Mandei embora”, contou à Folha no lançamento da sua biografia, em 2016.
Se o ativismo contemporâneo torcia o nariz para essa artista que não dominava uma terminologia que surgiu após seu sucesso, com palavras como transexual e cisgênero, ela fez as pazes com esse grupo nos últimos anos. “Os ativistas são muito importantes. Eu adoro que eles existam, e defendo até o fim. Mas não é a minha.
Eu vim para divertir.” Mas a arte de Rogéria tinha um fundo de transgressão e, logo, de mudança. Um ano atrás, perguntei se ela não tinha medo de morrer. Ela respondeu: “Meu amor, eu vivi mais do que qualquer outra. Mais e melhor.” Um dado que Rogéria talvez não soubesse na teoria, mas expressava na prática: a expectativa de vida de uma travesti ou pessoa trans no Brasil é estimada em 35 anos.
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