Infância refugiada: 10 mil crianças venezuelanas já entraram no Brasil

Hoje é o Dia das Crianças e no alojamento BV8 em Pacaraima (RR), fronteira do Brasil com a Venezuela, os cerca de 400 meninos e meninas que vivem temporariamente por lá têm um pedido: cholas ou em português, chinelos. Alguns deles não têm calçados para proteger os pequenos pés que cruzaram caminhos difíceis até chegar ao Brasil.

Desde 2017, mais de 200 mil venezuelanos já entraram no Brasil fugindo da crise econômica, política e social do país. De acordo com estimativas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), entre eles estão quase 10 mil crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, considerando o período de 2015 a 2019. O número é uma projeção, já que não há um dado oficial. Uma delas é Diego Hernandéz, de 10 anos. Ele está com a mãe e irmãos no BV8, um abrigo temporário que acolhe principalmente o público mais vulnerável, até que possam seguir para Boa Vista ou para outros estados dentro do processo de interiorização.

“Queremos chinelos e roupas para sermos crianças limpas. Quando as crianças não têm roupa, elas se sentem tristes”, explica Diego. O tenente-coronel Barcellos, coordenador da Operação Acolhida em Pacaraima, conta que as crianças chegam com necessidades muito básicas como roupas e fraldas.

“Muitas vezes elas chegam sem entender o que está acontecendo. A gente vê que para elas tudo é novo, diferente”, diz Barcellos. A Operação Acolhida é coordenada pelas Forças Armadas com apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), além de outros órgãos do poder público e entidades da sociedade civil.

Apesar das difíceis condições, o menino agradece o acolhimento no Brasil e fala com propriedade sobre a crise que levou ele e sua família a cruzarem a fronteira. “Pelo menos vocês estão nos ajudando porque a Venezuela está pobre, já a metade da população se foi porque a situação está muito feia por lá”, lembra Diego.

As crianças são uma preocupação ainda maior no contexto da migração, já que direitos muito básicos como a alimentação adequada ficam comprometidos. “Essas pessoas foram deslocadas de suas residências então tem um impacto desse deslocamento, a chegada no local. Às vezes a vida num abrigo também é muito distinta da realidade que essas crianças estavam vivendo na Venezuela. Isso tudo tem feito com que esse processo tenha um impacto muito forte nas crianças”, aponta Thais Menezes, chefe de relações institucionais da Acnur.

Primeira infância

A vida no alojamento BV8 e nos outros abrigos mantidos pela Operação Acolhida pode não ser a ideal. Mas lá, as crianças têm ao menos três refeições por dia e um lugar seguro para dormir. Entre os cerca de 700 moradores temporários do local – o espaço está sendo ampliado para receber até mil pessoas – estão cerca de 60 crianças com até 7 anos. A maioria delas está na chamada primeira infância, período que vai do nascimento até os 6 anos de vida. A primeira infância é uma fase decisiva para o desenvolvimento infantil, pois é quando o cérebro é moldado a partir das experiências, dos estímulos e do ambiente em que a criança vive.

“Os primeiros anos são muito importantes porque tudo está acontecendo ali ao mesmo tempo e rapidamente. Quanto maior a estimulação, o cuidado e a atenção dos pais em relação a essas crianças em desenvolvimento e, no caso da migração da sociedade também, isso vai permitir o desenvolvimento de seres saudáveis”, explica a professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB), Ângela Uchoa. Ela destaca que o estresse e a desnutrição, além de aspectos afetivos, têm impacto no desenvolvimento da criança.

Na tentativa de mitigar os efeitos negativos da migração, o Unicef mantém os Espaços Amigos da Criança, onde as crianças recebem atendimento pedagógico e participam de atividades recreativas. Ao todo, 23 unidades estão em funcionamento no estado de Roraima e mais de 15 mil crianças e adolescentes já foram atendidos.

Em Pacaraima, bem próximo das instalações onde os adultos cuidam de questões burocráticas de documentação e identificação para poderem entrar no Brasil, dezenas de crianças cantavam, dançavam e brincavam sob o comando dos monitores da Visão Mundial, organização que apoia o Unicef nas ações.

Lá estava Sophia Valentina Curapiaca, 5 anos, que está com a mãe e os irmãos em Pacaraima enquanto aguarda as ações de interiorização para encontrar o pai, que já está morando em São Paulo. Ela lista as brincadeiras que gosta de fazer: jogar pelota (bola, em espanhol) e desenhar. “Aqui não tenho amigos, meus amigos ficaram na Venezuela. Mas brinco com meus irmãos”, diz Sophia.

A venezuelana Sorimar Tremária atua como professora social no espaço do Unicef há dois anos. Na Venezuela, trabalhava como enfermeira e educadora, mas viu-se obrigada a deixar o país em razão da crise econômica: seu salário chegou a valer apenas R$ 8.

“Nosso espaço é chamado pela nossa equipe de espaço da alegria. Porque as crianças esquecem toda realidade da Venezuela, aqui é outro mundo. Só um lápis de cor e um papel fazem a diferença para eles. Eles nos falam: ‘tia é difícil encontrar uma folha para escrever na Venezuela e vocês dão para nós, fazemos atividades’, coisas que na Venezuela não se faz porque é muito caro um lápis”, exemplifica Sorimar.

Apesar dos efeitos negativos dessas privações no desenvolvimento infantil, a professora Ângela Uchoa destaca que há um grande poder de recuperação das crianças em razão da plasticidade do cérebro. “Mesmo tendo passado por situações estressantes, o potencial de recuperação do ser humano é imenso e a gente tem que sempre apostar nesse potencial. É a resiliência, é a capacidade de resistir”, analisa Uchoa.

Quando a nossa equipe de reportagem visitou o BV8, as crianças ensaiavam uma coreografia para apresentar na festa do Dia das Crianças, organizada pela coordenação da operação. Perguntado sobre o que gostaria que os adultos fizessem pelas crianças imigrantes e refugiadas, Diego resume com a simplicidade de quem só tem 10 anos, mas já carrega uma história dura para contar: “Eu quero que todas as crianças tenham roupas, chinelos, vivamos a vida feliz e quando formos grandes tenhamos estudo aqui no Brasil. Sejamos homens de bem”, diz.

Edição: Liliane Farias

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*